segunda-feira, 17 de outubro de 2011

STEVE JOBS

STEVE JOBS (1955-2011)

A morte do deus tecno-humano

Por Raphael Tsavkko Garcia em 11/10/2011 na edição 663

Visionário, gênio, herói, semideus e mesmo um deus tecno-humano foram apenas alguns adjetivos usados pela mídia, por blogs e por indivíduos para descrever Steve Jobs, na quarta-feira (5/10), vítima de câncer, aos 56 anos de idade. De forma absolutamente irrestrita sua imagem foi vendida como a de um personagem irreal, saído da ficção direto para salvar a humanidade da inércia e da apatia. Seus iPods, iPhones e outros “i’s” se tornaram paradigmas supremos e símbolo da modernidade em que a tecnologia determina nossas vidas.

Mais do que um obituário, Steve Jobs obteve um case de marketing completo onde seus produtos foram vendidos sob o falso tom de jornalismo comprometido. Sua morte pareceu até mesmo um golpe de marketing. Apenas poucos dias após o anúncio de mais um novo produto, sonho de consumo em um mundo onde a posse de gadgets ultramodernos se tornou razão da vida de muitos, morre Jobs, sua marca foi exaltada e o e a compra do mais novo iPhone transformada quase em homenagem à memória do semideus.

Como de costume, a morte nos torna a todos perfeitos. Apaga nossas falhas, nossas contradições. Não há nenhum morto que não seja lembrado com alguma dose de... carinho, talvez? Mesmo os piores ditadores encontram conforto na memória de selecionados seguidores. Por que seria diferente com Jobs? Aos que se surpreendem com a comparação com ditadores, não se assustem. Jobs era líder de um império empresarial, capitalista por natureza. Não aceitava limites para sua criatividade ou para seus lucros. Contrário à lógica colaborativa e democrática que permeia a rede, preferia ter sob seu guarda-chuva os melhores, prontos a trabalhar por gordos salários, e mantendo preso sob contrato conhecimentos que poderiam ajudar no desenvolvimento de diversas outras ferramentas e produtos tecnológicos.

Pensamento único da mídia

Sua empresa, a Apple, estava envolvida em escândalos, como casos de trabalho escravo e mesmo suicídios em fábricas que produziam seus produtos na China, como a Foxconn, que logo ampliará suas garras até as terras brasileiras. Michael Moore já provou em seus documentários que os patrões normalmente sabem das condições desumanas a que são submetidos seus empregados, mesmo que em empresas terceirizadas. No Brasil, tivemos recentemente a cobertura do caso da Zara, cuja cadeia de produção incluía baixos salários e imigrantes em situação análoga à da escravidão. Neste caso, palmas para a mídia que teve a dignidade de ajudar na denúncia e na pressão.

No caso da Apple, toda e qualquer denúncia foi, agora, enterrada pelos louvores ao gênio precocemente falecido. Ditador em suas maneiras, frio nas suas decisões e interessado apenas na promoção pessoal e na de seus produtos, que só faltam ir ao mercado e fazer as compras pelo seu feliz dono. Apenas na internet, no ambiente em que a mídia ainda enfrenta dificuldades para impor sua ditadura do pensamento único, algumas vozes destoaram do coro ao semideus. Mas tímidas, localizadas e mesmo comportadas.

Estas foram ignoradas ou reproduzidas pela mídia com tom de descrença, quase de ofensa pessoal contra um herói que talvez tenha descoberto a penicilina ou a cura para o câncer, mas que foi vencido em uma batalha heroica.

A ditadura de pensamento único da mídia se perpetua e mantém vivo o alerta pela necessidade de uma real democratização dos meios de comunicação. E, acima de tudo, mostrou que, mais uma vez, a internet permanece como um dos únicos polos de resistência que, ironicamente, foi a casa do deus tecno-humano que faleceu.

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[Raphael Tsavkko Garcia é jornalista, blogueiro e mestrando em Comunicação]

FONTE: Observatório da Imprensa.

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