segunda-feira, 28 de novembro de 2011

JÚLIO VERNE

JÚLIO VERNE (1828-1905)

O melhor repórter do futuro

Por Sérgio Augusto em 22/11/2011 na edição 669

Reproduzido do suplemento “Sabático”, do Estado de S.Paulo, 19/11/2011: intertítulos do OI

Do primeiro Jules (ou Júlio) Verne ninguém esquece. O meu foi em quadrinhos: Vinte Mil Léguas Submarinas, na versão que lhe deu a Edição Maravilhosa (n.º 10, abril de 1949), ilustrada por Henry C. Kiefer. Um epifania infantil, sem dúvida, superada, cinco anos mais tarde, pelo filme de Richard Fleischer e, antes deste, pela imersão adequada no próprio romance, traduzido na íntegra não me recordo mais por quem. Sempre por aí, em edições de variado pedigree, ainda é o best seller do autor e acaba de ganhar outra, caprichada, da Zahar (tradução de André Telles, 456 págs., R$ 59,00), com as indispensáveis ilustrações de Alphonse de Neville e Édouard Riou.

Verne não foi apenas o contador de histórias mais imaginoso de todos os tempos – uma espécie de Leonardo da Vinci da ficção –, mas também o criador de uma mitologia singularmente estruturada a partir das crenças filosóficas e científicas de sua época. Encantou Proust, Rimbaud (cujo Bateau Ivre seria uma recriação poética e ébria do Nautilus de Vinte Mil Léguas Submarinas), Raymond Roussel, Julio Cortázar, Nietzsche (cujo Zaratustra seria a reencarnação filosófica do capitão Nemo), Michel Butor (que vislumbrou a presença do escritor nas pinturas de Max Ernst, Rousseau e na poesia de Lautréamont).

Entre nós, não foi diferente. Data de 1875, com A Ilha Misteriosa ainda fresca nas livrarias da França, a primeira ficção brasileira de inspiração verniana: O Doutor Benignus, de Augusto Emilio Zaluar. Outras haveria, nenhuma com a qualidade literária e a sutileza de Lições de Abismo, a “viagem ao centro da Terra” de Gustavo Corção.

Um avatar de Lúcifer

Interessado em ciência desde menino, como Voltaire, Balzac e seu assumido mestre Edgar Allan Poe, o visionário de Nantes foi o produto literário mais delirante que o cientificismo do século 19 gerou com os olhos voltados para o século 20. Verne intuiu e imaginou (ou inventou entre aspas) diversos prodígios mecânicos, químicos e até eletrônicos, como o submarino (o do holandês Cornelius Drebell, dois séculos mais novo que o Nautilus, não passava de um bolsão de couro), o escafandro, o batiscafo, o dirigível, o helicóptero, o trator e o automóvel, o gás asfixiante, o canhão de longo alcance, a fotografia em cores, o hidroavião, a vitrola, o cinema, a televisão, os computadores, a bomba atômica, o cinema em 3-D – e um vasto etc. Seu recorde nessa especialidade, tudo leva a crer, jamais será ultrapassado.

A paixão pelo experimentalismo passou-a a seus alter egos: o capitão Nemo (precursor de Drebell e também de Jacques Cousteau), Robur (precursor de Santos Dumont), o capitão Hatteras (que foi verificar a existência de um mar livre no polo Ártico), o professor de Viagem ao Centro da Terra (que foi validar in loco a teoria do fogo central), para ficarmos só nos mais conhecidos. Mas a vaidade, o excesso de autoconfiança e o messianismo dos cientistas o atemorizavam. Robur, o conquistador que em 1886 surge como um protótipo do admirável homem novo moldado em Nemo, mais parece um avatar de Lúcifer ao ressurgir, uma década mais tarde, em O Senhor do Mundo. Não foi por acaso que, no cinema, entregaram esse papel a Vincent Price.

Colonialismo por imperialismo

Além das profecias, utopias e distopias, Verne notabilizou-se como um intérprete glutão dos grandes acontecimentos políticos e sociais do século 19, como um correspondente de guerra e conflitos que nunca precisou sair de seu gabinete. Em seus romances “cobriu” a guerra dos bôers na África, a resistência de El Hadji Omar às tentativas francesas de conquistar o Senegal, o estabelecimento da autoridade chilena nos Andes, a guerra de Secessão americana, a venda do Alasca e outros territórios pelos russos, a corrida do ouro na Califórnia e na Austrália, as pressões do governo Theodore Roosevelt sobre a América Central e o Caribe, a insurreição Taiping na China Central, a guerra de independência da Grécia, a guerra da Crimeia, os movimentos de emancipação nacional dos húngaros, escoceses, irlandeses, búlgaros e noruegueses, a eclosão do anarquismo na Itália, Rússia, França e na América. E, em A Jangada – 800 Léguas pelo Amazonas, a proclamação da República no Brasil.

Muitas posições políticas assumidas por seus personagens conflitam com as do conservador que ele sempre foi, defensor da ordem a qualquer preço, da mulher no fogão ou num canto a tricotar, adversário dos que apoiavam Dreyfus, das sufragistas e dos communards de Paris. Vinte Mil Léguas Submarinas talvez seja sua aventura mais pessoal, a mais contaminada por suas secretas simpatias libertárias.

Nemo termina abjurando seus princípios e questionando sua misantropia. Seu lamento final – “Deus todo-poderoso! Basta! Basta!” – foi uma concessão ao editor Hetzel e ao público. Verne e Hetzel discutiram extensamente sobre a identidade política de Nemo. Hetzel queria justificar as ações de Nemo como uma consequência de sua luta contra a escravidão, mas Verne não aceitou: para ele, Nemo afundava o navio inglês simplesmente porque fora provocado. Mas é claro que o escritor, e não apenas o comandante do Nautilus, considerava a escravidão um dos “horrores da civilização”. Hetzel, pragmático, era contra a escravidão porque o seu fim, segundo os economistas da época, representaria um importante salto para o futuro e resultaria na ampliação do mercado consumidor.

As sociedades industriais, então, trocavam o colonialismo pelo imperialismo. Atento a todos os seus movimentos, Verne inseriu-os em sua ficção. E assim foi que o futuro ganhou um grande repórter.

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[Sérgio Augusto é jornalista e colunista do Estado de S.Paulo]

Fonte: Observatório da Imprensa.

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