segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

FELIX MENDELSSOHN

Jacob Ludwig Felix Mendelssohn Bartholdy nasceu em Hamburgo (Alemanha) a 3 de fevereiro de 1809. Neto do filósofo Moses Mendelssohn, pertencia à família de ricos banqueiros judeus, convertidos ao cristianismo.
Recebeu educação cuidadosa: além de piano e composição, estudou literatura e arte, dominando a expressão literária com a mesma facilidade com que dominou a música. Estudou em Berlim (1811), depois em Paris
Mendelssohn começou a dar concertos aos nove anos de idade! Por essa época publicou uma tradução da Adreana, de Terêncio e em 1821 esteve em Weimar, tocando na presença do poeta alemão, Goethe. Terminou diversas peças musicais, entre elas a abertura Sonhos de uma noite de verão (1826), e fez representar a ópera As bodas de Camacho.
De 1826 a 1828, Mendelssohn freqüentou a universidade de Berlim, e ao longo de sua trajetória acadêmica teve a possibilidade de ter mestres de grande prestígio, entre os quais se distinguiram nomes como o de Hegel, Carlos Hitter e Eduardo Gans.
Mendelssohn destacou-se em quase todas as disciplinas, exceto em matemática e física, e falava vários idiomas.
A fim de completar a sua formação estética, Mendelssohn estudou artes plásticas com João Gottlob Rösel, da Academia de Belas Artes de Berlim.
Mendelssohn pintou durante toda a sua vida, dominando a técnica da pintura e aquarela. Apresentava, ainda, destacado desempenho nos esportes e costumava praticar exercícios como a equitação e a natação. Também era, segundo diziam, um excelente dançarino.
Posteriormente, freqüentou a Academia de Canto de Berlim, onde aprendeu a arte da instrumentação e da regência de coral. Pode-se dizer que a precocidade e o destaque do jovem compositor em tudo ao que se propunha derivava, em parte, da excelente formação educacional e do ambiente em que vivia, no qual mantinha contato com importantes e influentes intelectuais. Ao finalizar seus estudos, seu pai aceitou que se dedicasse à música, a qual já havia se convertido no centro de suas atenções.
O trabalho que Mendelssohn realizou para recuperar a música anterior a seu tempo, foi comentado na historiografia da arte dos sons e centra-se, principalmente, em um marco histórico: no dia 11 de março de 1829 era representada em Berlim, apesar da hostilidade de boa parte dos membros dos círculos musicais, a Paixão segundo São Mateus, de J.S.Bach. Entre os presentes estava o seu mestre, Carlos Frederico Zelter, que foi o responsável por suscitar o interesse de seu aluno pelo barroco J.S.Bach, compositor que marcou o estilo das composições do jovem músico.
Montada e dirigida pelo próprio Mendelssohn, fazia exatamente 79 anos, ou seja, desde a morte do grande compositor barroco, que não se escutava essa obra-prima, a qual, a partir de então, foi redescoberta e voltou a ser incluída nos programas musicais do continente, junto às demais obras do catálogo bachiano.
As inquietudes de Mendelssohn fez com que empreendesse uma série de viagens, em sua grande maioria financiadas por seu pai, principalmente pela Inglaterra, Escócia (1829), Itália (1830-1831), França (1831) e Inglaterra outra vez (1832-1833), com a finalidade de ampliar seus conhecimentos culturais. Na Inglaterra, onde esteve em abril de 1829, em Londres, dirigiu-a e interpretou-a com grande êxito. No dia 29 de novembro desse mesmo ano, a Real Sociedade Filarmônica de Londres, admitiu-o entre seus membros.
Mendelssohn visitou, ainda, a Escócia e a Irlanda, antes de regressar a Berlim.
Desde esse momento, a Inglaterra converteu-se em um dos seus destinos prediletos, descrevendo Londres com estas palavras: ‘(...) Sinfonia de fumaça e de pedra, é o monstro mais grandioso que se pode encontrar. Eu nunca tinha visto tanto contraste e tanta variedade’.
Ao regressar da viagem, rejeitou o cargo de professor que havia sido criado para ele em Berlim, e em maio de 1830 partiu novamente, nessa ocasião para a Itália, passando também por Weimar (onde voltou a ver pela última vez seu amigo Goethe), Munique e Viena.
Mendelssohn visitou em primeiro lugar as cidades de Veneza e Bolonha, e em outubro desse ano chegava à Florença. As impressões do jovem artista em relação aos seus primeiros contatos com a cultura mediterrânea foram intensas, e ficaram registradas na vasta correspondência que manteve com seus familiares.
Outra cidade que o impressionou foi Roma, onde residiu desde 1.º de novembro de 1830 até 10 de abril de 1831: ‘(...) E quando em meio a um deslumbrante e esplêndido luar e um céu turquesa escuro, encontrei-me em uma ponte com estátuas e ouvi alguém gritar ponte móvel, de repente tudo me pareceu um sonho’.
Diante da basílica de São Pedro, um impressionado Mendelssohn escreveria: ‘Uma grande obra da natureza, um bosque, um grande maciço ou algo semelhante, porque não posso aceitar a idéia de que seja obra de homens’.
Em outra carta, datada do dia 20 de dezembro, Mendelssohn mostrava-se completamente adaptado ao novo ritmo que impunha a seus habitantes a grande cidade meridional: ‘Há um sol intenso, um céu azul, um ar límpido. (...) É incrível a sensação que causa este ar, esta serenidade, e quando me levantei e vi reaparecer o sol, fiquei alegre em pensar que não faria nada. Todos saem para passear de um lado a outro, e desfruta-se da primavera em dezembro. A cada momento encontram-se amigos, depois separam-se, cada um segue sozinho e pode sonhar. (...) Os montes Sabinos estão cobertos pela neve, o brilho do sol é divino, o monte Albano apresenta-se como uma aparição de sonho. Nada parece distante aqui da Itália, pois todas as casas podem ser contadas sobre os montes com suas janelas e telhados’.
Em Roma, Mendelssohn conheceu Berlioz, com quem manteve uma boa amizade.
O compositor francês descreveria, assim, seu colega alemão: ‘É um jovem maravilhoso, seu talento como intérprete é tão grande como o seu gênio musical.
(...) Tudo o que ouvi dele me entusiasmou, estou fortemente convencido de que é um dos maiores talentos musicais de nosso tempo (...) e é também uma dessas almas cândidas que raras vezes encontramos’. Entre suas melhores composições dessa época estão A caverna de Fingal, o Concerto para piano em sol menor, a Sinfonia n.º 4 - Italiana e o oratório Paulus.
No final de 1831, Mendelssohn visitou novamente Paris, ocasião em que conheceu, entre outros compositores,Chopin, Meyerbeer e Liszt. Entretanto, o desprezo da Sociedade de Concertos em relação à sua Sinfonia n.º 5 - Reforma, e a epidemia de cólera que assolou a cidade fizeram com que o compositor abandonasse a cidade e se dirigisse a Londres, onde chegou no dia 23 de abril de 1832.
Cerca de um ano antes, em 28 de maio de 1831, uma carta enviada às suas irmãs Fanny e Rebeca refletia o apreço que o músico alemão sentia por essa cidade: ‘(...) Está escrito no céu que aquele lugar coberto por brumas foi e continua sendo a minha residência predileta. Meu coração bate forte quando penso nele’.
Em Londres Mendelssohn soube da morte de duas das personalidades que mais admiravam: Goethe, que havia falecido no dia 22 de março de 1832, e Carlos Zelter, um de seus professores, no dia 15 de maio.
Decidiu regressar a Berlim no mês de julho, permanecendo nessa cidade até 15 de janeiro de 1833, quando foi surpreendido por outra má notícia: a negativa quanto à sua aceitação para ocupar a vaga de Zelter na Academia de Berlim.
Depois de um primeiro contato promissor com a orquestra de Gewandhaus, de Leipzig, Mendelssohn decidiu aceitar a proposta na qual se converteria em diretor do festival do Reno. Posteriormente, viajou a Londres, ocasião em que se deu a estréia de sua Sinfonia n.º 4 - Italiana , no dia 13 de maio de 1833.
Pouco tempo depois, assinou um contrato de três anos para dirigir as atividades musicais em Düsseldorf.
Mendelssohn permaneceu nessa cidade até 1836, embora no outono de 1835 tivesse aceito a direção do Gewandhaus de Leipzig, começando a exercer suas funções à frente dessa instituição que, sob o seu comando, alcançou um grande prestígio. Em 1836, recebeu o título de doutor honoris causa, da universidade de Leipzig.
Em 1841, foi chamado à Berlim por Frederico Guilherme IV, rei da Prússia, o qual desejava fundar um grande conservatório.
Mendelssohn tornou-se o seu mestre de capela e, desde então, dividiu suas atividades entre Berlim e Leipzig. Ainda em 1841 recebeu do rei da Saxônia o título de diretor de orquestra.
Em 1843, Mendelssohn fundou e dirigiu uma das instituições mais destacadas em todo o continente: o Conservatório de Música de Leipzig. Nele, o músico ensinou composição e piano, junto a uma equipe de professores selecionada por ele e da qual também fazia parte o renomado compositor Schumann.
O Conservatório de Música de Leipzig alcançou um alto nível, em sua época inigualado por outro instituto em toda Alemanha. Mendelssoh viveu nessa cidade até 1845.
Em 1846 dirigiu em Birmingham, a primeira audição do seu oratório Elias, que foi triunfalmente recebido. De regresso dessa viagem, recebeu a notícia do falecimento de sua irmã Fanny, o que lhe causou forte abalo.
Mendelssohn veio a falecer poucos meses depois, a 4 de novembro de 1847, em Leipzig (Alemanha).
Mendelssohn é um compositor eclético, embora de linguagem muito pessoal. Inspirado por sentimentos românticos criou obras de altas qualidades formais, fiel ao Classicismo vienense. Homem fino e culto, sua música equilibrada reflete a falta de paixão de quem se fez na vida sem esforço.
Seu Concerto para piano n.º 1 em sol menor (1826) é obra tecnicamente difícil, mas já de valor. Ainda em 1826, com a idade de apenas 17 anos, compõe sua primeira obra-prima, a brilhante abertura Sonho de uma noite de verão. A obra é rica em efeitos atmosféricos e as melodias são de um lirismo encantador. A música incidental para a peça de Shakespeare e a famosa Marcha nupcial foram acrescentadas em 1842.
Entre as obras mais conhecidas de Mendelssohn encontram-se as várias coleções para piano das Canções sem palavras (1829-1845). São pequenas peças melodiosas, sentimentais ou espirituosas, e já foram muito tocadas pelos diletantes.
Dos lieder de Mendelssohn só um sobrevive: Nas asas do canto.
Um verão na Escócia inspira a abertura As Hébridas (1833), também denominada A caverna de Fingal. Já foi definida como "sinfonia de turista" a Sinfonia n.º 3 - Escocesa (1842), dedicada à rainha Vitória, obra notável pelo sombrio colorido nórdico.
Depois das Variações sérias (1841), para piano, escreveu Mendelssohn a sua obra-prima madura, o Concerto para violino em mi menor Op. 64 (1845), o mais melodioso e brilhante concerto violinístico. O Trio para piano em ré menor (1839) merece destaque pela energia sombria do primeiro movimento e a verve do scherzo, mas peca pelo sentimentalismo do movimento lento.
Como regente Mendelssohn teve o imenso mérito de ressuscitar J.S.Bach e criou o repertório histórico dos concertos sinfônicos de hoje, com base nas obras de Haydn, Mozart e Beethoven. Admirador de Händel, reflete sua influência nos oratórios Paulus (1835) e Elias (1846), que tiveram grande sucesso em Londres. Elias, principalmente, continua nos repertórios corais.
No Quarteto em fá maior Op. 80 (1847), Mendelssohn apresenta traços de influência dos últimos quartetos de Beethoven, sendo ele o primeiro a admirá-los devidamente.
Das sinfonias de Mendelssohn cumpre ainda citar a Sinfonia n.º 5 - Reforma (1829-1830) e sobretudo a Sinfonia n.º 4 - Italiana (1833). Criou também música para órgão e capela.
A obra de Mendelssohn, banida da Alemanha pelo nazismo, sobreviveu à hostilidade anti-semita dos wagnerianos. Suas composições, vivas e harmoniosas, foram incorporadas ao repertório internacional como representação máxima da elegância musical do século XIX. Somente das obras para piano muitas caíram no esquecimento.
Nem romântico, nem clássico, Mendelssohn seria mais apropriadamente definido como uma espécie de parnasiano avant la lettre. Sua obra combina a ortodoxia clássica e o colorido romântico, fórmula para epígonos desenvolvida pelos seus alunos do conservatório de Leipzig, que semearam o academismo no mundo inteiro.

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

COMO SE FAZ UM LIVRO?

Como se faz um livro?


"Cada livro tem o seu tempo para ficar pronto"
Amilcar Bettega
De Lisboa
Num destes totens cheios de anúncios de filmes, peças de teatro, programas culturais e outros papéis do gênero, recolho o folheto de uma oficina de escrita. Um dos cursos propostos traz o título "Como escrever um livro?". Na verdade, o título é esse mas sem a interrogação - só num segundo momento eu me dei conta que li uma interrogação onde havia uma afirmação. Mas deixo assim, porque não quero falar da tal oficina em particular, que não conheço. Nem das oficinas num sentido genérico, como prática de abordagem dos assuntos relativos à escrita e à literatura. Tenho minha opinião a respeito e adianto a quem quiser saber que no embate feroz que se trava entre os defensores e os detratores das oficinas literárias eu me coloco de maneira clara e firme entre os primeiros. Mas repito, não é isso o que me interessa aqui, e sim esta interrogação que aparece (pelo menos para mim ela aparece) no título: como escrever um livro?
Sou um escritor que escreve pouco, muito pouco. Escrevo devagar, a custo, como que puxando a forceps. Nenhum dos livros que fiz até agora necessitou menos de quatro anos de trabalho. E olha que são livros curtos, com pouco mais de uma centena de páginas cada.
Claro que a experiência da escrita é sempre única, e a minha ou a de qualquer outro não pode servir de parâmetro para ninguém. Mas ela, a minha experiência, é só o que tenho, e é a partir dela que me permito refletir sobre como fazer um livro.
Até hoje escrevi e publiquei três livros de contos. E neste momento, após quatro anos e meio de trabalho, sinto que me aproximo do fim de um romance. Nos livros de contos, por se tratarem de um conjunto de textos autônomos, fica mais difícil observar como o livro toma forma. Mas no romance, um longo texto inteiramente articulado (ou que requer algum tipo de articulação), é fascinante observar como se constrói, a partir de elementos bastante frágeis, essa peça que muitas vezes exibe uma complexa arquitetura narrativa.
Mas o que me surpreende a cada vez que tento olhar de fora e da maneira mais honesta possível para o meu próprio trabalho (ou para a sua construção) é a impressão de que um livro se faz meio sozinho. É como se ele fosse um organismo vivo, que cresce, toma forma, se desenvolve tanto interna quanto externamente, tudo isso um pouco à parte de seu autor.
Não tenho dúvida, por exemplo, que cada livro tem o seu tempo para ficar pronto. Não adianta eu dizer que vou me separar do mundo durante seis meses e trabalhar dezoito horas por dia para escrever um livro. Se ele precisa de três, quatro anos, ele não sairá antes de três, quatro anos. A literatura é uma arte da paciência. Paciência, obstinação e certo orgulho, segundo António Lobo Antunes. São com estes atributos, ele diz, que os escritores fazem os livros. Não estou bem certo se são estas três qualidades (ou defeitos) que o escritor português lista, e tenho preguiça agora de ir verificar. Se não são estas, são outras bem parecidas. Mas estas me servem.
É preciso ter paciência, dar tempo ao livro, todo o tempo de que ele necessita. E persistir, achar forças para continuar mesmo quando não se vê nada no horizonte. E sobretudo ter orgulho do que se está fazendo - eu diria mesmo alguma dose de presunção para achar que aquilo que criamos pode interessar e até ser importante para os outros. Ninguém pede a um escritor que ele escreva (pelo menos não no início, quando ele não é ainda um "escritor", alguém que publica e, teoricamente, tem um público leitor), ninguém cobra dele que faça o seu trabalho, ninguém lhe garante que o que ele está escrevendo vai ser lido, muito menos publicado e menos ainda que vai ser remunerado pelas horas de trabalho. E ainda assim o cara escreve. Paciência, orgulho, obstinação. Birra, burrice, doença, por aí vai.
Mas acho que me desvio. O que eu queria era dizer que agora, ao me aproximar do fim de um livro e olhar para aquele monte de páginas e ver que ali está uma narrativa concatenada, um texto que pode ser lido e fazer algum sentido para pessoas que não conheço e que não têm nada a ver comigo, e que, principalmente, quase tudo que ali está me é tão estranho a ponto de eu ler como se fosse de outro, eu não posso deixar de me espantar de como isso se dá, e de concluir humildemente que não se faz um livro - um livro se faz. Ao verificar os caminhos que a trama e a própria estrutura do livro tomaram, eu me dou conta que nunca poderia tê-los imaginado no momento em que iniciava a escrita. Certas cenas, certos personagens, que agora estão ali como elementos importantes para que a coisa fique em pé, me eram antes completamente inimagináveis. De onde vieram? Como surgiram?
Escrevo um livro escrevendo, ou seja, pego na caneta e saio escrevendo, sem esboços prévios de personagens, sem esquema da estrutura, das vozes narrativas, sem planejamento nenhum e sem ter, é óbvio, a mínima ideia de onde vou chegar (e se vou chegar). Parto de muito pouco, às vezes de uma frase, uma ideia, não raro uma imagem, mas nada mais do que isto. E saio escrevendo. Certo, no meu ritmo bovino, paquidérmico, me atolando na lentidão, mas vou botando uma palavra atrás da outra, porque não conheço outra maneira para se chegar ao fim de uma frase, de um parágrafo, de uma página, etc.
E creio ser por aí que a coisa passa. Como já disse outra vez, aqui mesmo neste espaço, quando uma frase é posta (construída, puxada, arrancada, etc.), dá-se o primeiro passo. O segundo (passo, frase) vai estar sempre vinculado ao primeiro, é parte dele, vem dali, da mesma essência. Justifica, completa, dá sentido: inventa. Assim, o segundo é também determinante do primeiro. Se não fosse a sequência, o início seria outro. Esta vinculação íntima, estas alimentações mútuas, estes movimentos de ida e volta é que encaminham o texto dentro de sua própria lógica. Uma lógica desconhecida do autor e a que ele só terá acesso escrevendo, apenas quando começa a escrever e tenta avançar, mesmo sem saber como nem para onde.
Uma palavra, depois outra, depois outra, na lógica e no ritmo próprios do livro. O papel do escritor é acreditar nisso, manter uma espécie de fé (não gosto dessas modulações religiosas, mas vá lá, não acho nada melhor agora: fé) na ideia de que pondo a frase no papel esta vai puxar a seguinte e a seguinte e o carro vai começar a andar. Um livro depende, portanto, deste esforço, desta entrega do escritor, mais do que da sua vontade e capacidade de criação.
Amilcar Bettega é escritor, autor de O vôo da trapezista, Deixe o quarto como está e Os lados do círculo (Prêmio Portugal Telecom de literatura brasileira, 2005).

Fonte ; PORTAL TERRA.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

PROCURAM-SE LEITORES NO BRASIL




Armazém Literário

LIVRO & LEITURA

O leitor, onde está o leitor?

Por Affonso Romano de Sant’anna em 18/10/2011 na edição 664

Reproduzido do Estado de S.Paulo, 15/10/2011


Os editores brasileiros revelam que estão publicando livros “demais”. Isto é uma verdade ou um mal-entendido? Luiz Schwarcz, da Companhia das Letras disse a este caderno que publica 280 títulos por ano e que “não dá para crescer mais com obras de mercado, até porque o mercado está muito competitivo. (…). Há editoras que hoje não conseguem entrar em redes de livrarias com um exemplar de algum título. Há uma superprodução. De livros, escritores, editores, um número de editoras grande surgindo”.

Sergio Machado, do Grupo Editorial Record, informou, também aqui, que em 2010 o Brasil editou 55 mil títulos, numa média de 210 obras por dia. Só a própria editora Record, comentou, coloca no mercado 80 títulos por mês. Seu proprietário revelou que tem 2 milhões de livros em galpões que lhe custam uma despesa alta.

Eis uma crise paradoxal. De excesso e de carência. Excesso de livros ou carência de leitores? Assim como um copo com metade de água pode ser visto como um espaço metade cheio ou metade vazio, permitam-me examinar a questão por outro ângulo, fazendo uma correção: o Brasil não produz livros “demais”, o Brasil produz leitores de menos. Há que “produzir” o leitor. E não estou falando de alfabetização. Essa cadeia do livro não existe sem o destinatário: o leitor. Não há excesso de livros, há falta de bibliotecas, de livrarias e de leitores. Há, por outro lado, centenas de iniciativas governamentais e particulares tentando corrigir isto. Todos, não só os editores, temos que modificar o conceito de livro, livraria, biblioteca, leitor e leitura, pois na verdade todo esse sistema em torno do livro está em crise (ou “metamorphose”).

Mas que crise é essa? Vejamos.

Crise, leitura e o pré-sal

Falar de leitura é uma auspiciosa novidade. Na década de 20 do século passado, Monteiro Lobato fundou uma editora brasileira e a literatura infantil. Com Borba de Morais e Mário de Andrade, na década de 30 redescobriu-se a biblioteca pública. Na mesma época o governo federal criou o Instituto Nacional do Livro pensando em editar uma enciclopédia e livros. Nos anos 50, Paulo Freire reinventou a alfabetização fazendo um plantador de cana aprender a ler em 45 dias.

Mas o conceito de leitura sempre esteve oculto, era o não-dito.

Leitura não se limita à “alfabetização”. Leitura não se limita à escola: trata-se de formar uma sociedade leitora, para o País enfrentar os desafios do século 21. Só em 1992 é que através do Proler pensou-se em implementar uma Política Nacional de Leitura. E desde 2006 que o PNLL (Plano Nacional do Livro e da Leitura) insiste numa política de leitura que atravesse todos os ministérios e seja uma determinação da Presidência da República. A rigor se poderia dizer: leitura é uma questão de segurança nacional.

Considerada a leitura como algo além da escola, algo além da alfabetização, algo que vai lidar com o “analfabetismo funcional” e com o “analfabetismo tecnológico”, haverá (como já começa a haver) programas de leitura em hospitais, quartéis, fábricas, sindicatos, empresas, tribos indígenas, igrejas, condomínios, acampamentos agrários, comunidades quilombolas, favelas, programas para aposentados e programa para cegos, surdos, mudos e outros deficientes físicos etc.

Nos últimos anos, “agentes de leitura” e “mediadores de leitura” se espalharam pelo Brasil. A experiência positiva dos agentes de leitura no Ceará foi levada para o Ministério da Cultura e expande-se em vários Estados. No Acre foram criadas mais de cem Casas da Leitura interagindo com uma nova maneira de ler a cultura e a natureza. Os agentes ou mediadores de leitura devem chegar a 15 mil brevemente e têm sido treinados por instituições como a Cátedra de Leitura da PUC-RJ. O ideal é que se mesclem com os “agentes de saúde” e os “médicos de família”.

Nessa redescoberta da leitura, onde havia apenas o Instituto Nacional do Livro, espera-se a criação do Instituto do Livro, da Leitura e da Biblioteca e a nova administração da Fundação Biblioteca Nacional planeja construir 25 mil bibliotecas populares com livro de qualidade a 10 reais.

Enfim, a leitura é o verdadeiro pré-sal. O petróleo em si não resolve os problemas básicos de um país. Há países que têm petróleo e têm terríveis desigualdades sociais e opressão política. Ha países que não têm petróleo e estão na ponta do processo civilizatório. E todos os países que realmente se desenvolveram passaram pela leitura. A leitura torna os livros vivos e desenvolve os países.

Torna-se irrecusável contar uma história verdadeira que narrei na recente Jornada Literária de Passo Fundo (agosto/2011), quando Alberto Manguel e Kate Wilson debatiam equivocadamente sobre esse tema. Diz-se que o Marechal Rondon, no princípio do século passado, foi designado para conquistar grande parte do território brasileiro levando a comunicação através de postes e fios que conduziam mensagens telegráficas. Depois de ter instalado praticamente em todo o País esse sistema de comunicação, ao colocar o último poste na fronteira da Bolívia foi surpreendido com a notícia de que Marconi havia acabado de descobrir o telégrafo sem fio.

Cem anos depois a situação se repete. Conseguiremos fazer na era do livro eletrônico o que não conseguimos fazer na era do livro impresso?

Se não conseguimos em 500 anos colocar uma biblioteca em cada canto do país, por outro lado, cada cidadão está se convertendo, à revelia de nossa incompetência histórica em um “consumidor” de informação através da informática, do Google, da internet. Se temos apenas 2.600 livrarias e 2.500 cinemas, é bom que nos espantemos e nos rejubilemos com o fato de que temos 109.000 lan houses e que só uma favela como a da Rocinha, que tem apenas uma biblioteca heroicamente construída e seguramente não possui nenhuma livraria, tem, por outro lado, 200 lan houses.

Inclusão digital

Tem-se falado muito de “inclusão digital”. O Ministério da Comunicação (Gesac) informa que “telecentros” estão sendo implantados em todo o país e já existem 13.379 em 5.564 municípios. Eles podem ter o papel que as bibliotecas convencionais deveriam ter tido. Os “promotores de inclusão digital” são irmãos gêmeos dos recentes “agentes de leitura” ou “agentes de cultura”. Os telecentros oferecem 6.200 kits do MC às prefeituras. O telefone portátil, o iPad e o Google são uma realidade. Os 200 milhões de telefones portáteis são 200 milhões de bibliotecas em potencial à espera de nossa criatividade. Assim como um viajante do século 18 tinha uma maleta de viagem em que carregava algumas dezenas de livros para ler, hoje pela internet todos podem ter uma biblioteca em suas mãos, seja nas margens do Tocantins ou no Sul do País.

O Brasil está vivenciando três fatos novos: 1) A invasão da eletrônica em nossa vida cotidiana, nos jogando em outra era. 2) O surgimento de outras gerações chamadas de X, Y, Z, pelos especialistas em marketing: jovens que vivem zapeando. São “dispersivos”, fazem várias coisas ao mesmo tempo, não têm o sentido de “concentração” unidirecional que era a nossa. Nós os achamos superficiais. Mas e se estivermos realmente diante de um fenômeno de mutação não exatamente genética, e sim cultural? Um daqueles momentos de point of no return que remete para a metáfora que McLuhan usou: a lagarta assustada olhando uma borboleta em seu esplendor, dizia: “Eu nunca me transformarei num monstro daqueles...” 3) A emergência das classes C, D e E que até agora estavam fora do mercado, da comunicação e da cultura livresca. Quando a gente fala de classe C, falamos de um século de exclusão, sem saúde, sem saber o que é política.

Lembremos: o aprendizado já foi oral – o essencial era o uso da memória. Com a evolução, o saber passou a ser escrito. Hoje, passa pelo visual. Ou pode-se dizer, é oral, é escrito e também visual. O oral, o escrito e o visual se complementam. Em algumas ocasiões tenho dito que, provavelmente, somos a última geração letrada. Gostaria de estar equivocado, que o futuro me desmentisse. Ou que descobrisse, descobríssemos formas novas de ler. Se olharmos a história do Brasil podemos detectar três momentos culturais e econômicos relevantes que nos forçam a uma decisão crucial no presente:

1) A febre do ouro e da pedras preciosas ocorreu quando éramos colônia e essa riqueza escoou para os cofres dos dominadores.

2) Tendo perdido essa chance, perdemos também a chance da revolução industrial nos séculos 18 e 19, porque aqui predominava a escravidão, a cultura agrária e a coroa brasileira era apenas cliente dos produtos industrializados europeus.

3) Estamos diante da revolução digital. Se perdemos as duas revoluções anteriores, hoje há algumas coincidências: a revolução digital chega com a avassaladora globalização, no momento em que o Brasil autossuficiente de petróleo incorpora outras classes e descobre o pré-sal.

Repito, para terminar: o verdadeiro pré-sal é a cultura e/ou a leitura. Os animais, os peixes, as árvores e até as bactérias leem constantemente o mundo antes de tomarem qualquer decisão. Por que o ser humano insiste em andar às cegas no universo da comunicação?

***

[Affonso Romano de Sant’Anna é escritor]

FONTE: Observatório da Imprensa.

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

QUESTÕES SOBRE A TECNOLOGIA ONLINE

Nove questões sobre o impacto da tecnologia online

20/12/2011 na edição 673

Tradução e edição: Leticia Nunes

O Centro para o Futuro Digital da Escola Annenberg de Comunicação e Jornalismo da Universidade do Sul da California estuda, há uma década, a relação dos americanos com a tecnologia. Compiladas, as conclusões de cada pesquisa formam um retrato do americano usuário da internet e as implicações da experiência online em sua vida. Em janeiro de 2012, o Centro divulgará um relatório completo sobre o tema. Por enquanto, Jeffrey I. Cole, que o dirige, antecipa alguns dos principais pontos tratados.

“Depois de 10 anos de estudos, nós concluímos que as forças, assim como as consequências da tecnologia, são mais profundas do que nunca. Em um extremo, vemos usuários com a habilidade de ter conexão social constante, acesso ilimitado à informação, e poder de compra sem precedente. No outro, encontramos demandas extraordinárias do nosso tempo, grandes preocupações sobre privacidade e questões vitais sobre a proliferação da tecnologia – incluindo uma gama de questões que não existiam há 10 anos”, afirma Cole, para continuar: “Acreditamos que os EUA estão passando por um grande ponto de virada digital. Simplesmente, vemos tremendos benefícios na tecnologia online, mas ao mesmo tempo pagamos pessoalmente um preço por estes benefícios. A pergunta é: o quanto estamos dispostos a pagar?”.

A década de estudos sobre o futuro digital chegou a mais de 100 grandes questões sobre o impacto da tecnologia online nos EUA. Abaixo estão nove delas:

** A mídia social explode – mas grande parte do conteúdo não tem credibilidade

Milhões de americanos participam diariamente de mídias sociais, mas, ao mesmo tempo, acreditam que a grande maioria das informações que encontram por lá tem pouca credibilidade. “Não é novidade que a mídia social é o futuro da comunicação, mas o que ainda não é inteiramente avaliado é a falta de convicção da maior parte dos internautas na precisão das informações que encontram nas redes sociais”, afirma Cole. “Nosso estudo mais recente descobriu que 51% dos usuários disseram que apenas uma pequena porção ou nenhuma informação que vêem em redes sociais é confiável. E apenas 14% disseram que a maior parte ou toda a informação é confiável.”

** O significado de “E-Nuff Already” continua a expandir

Há cinco anos, o Centro para o Futuro Digital cunhou a expressão “E-Nuff Already” (um trocadilho com “enough” e “e-mail”, em um termo que significa “Basta, já chega”) para descrever a preocupação entre os internautas sobre o impacto do e-mail sobre suas vidas. O termo expandiu e hoje abrange uma crescente variedade de questões. Cole diz que hoje ele inclui, além do correio eletrônico, muitos outros serviços e equipamentos que têm benefícios enormes para os usuários, mas também invadem suas vidas.

“Os americanos estão mais conectados do que nunca, mas a dominação pura da tecnologia talvez esteja atingindo um ponto crucial. Recebemos e-mails demais, a barragem de mensagens de texto é constante, carregamos dispositivos eletrônicos múltiplos, e novos serviços e aparelhos eletrônicos continuam a ser produzidos. Por quanto tempo será assim antes que os americanos digam novamente que basta?”

** O desktop está morto; vida longa ao tablet

Nos próximos três anos, segundo Cole, o tablet se tornará o principal computador pessoal dos americanos. O uso do desktop irá minguar a apenas 4 a 6% dos usuários de computador – restrito a escritores, gamers, programadores, analistas e cientistas – e o uso do laptop também diminuirá. “O tablet é um aparelho tão convidativo. O PC é um aparelho do tipo ‘incline-se para a frente’ – uma ferramenta que fica sobre uma mesa e força o usuário a ir até ela. O tablet tem um fascínio ‘recoste-se’ – mais conveniente e acessível que o laptop e muito mais atraente para usar. Para a grande maioria dos americanos, o tablet será a escolha de computador até o meio da década, enquanto o PC desaparece”, diz o diretor. “Nós não vemos uma consequência negativa na mudança para os tablets. Mas sua dominância irá provocar mudanças em como, quando e por que os americanos se conectam à internet”.

** O trabalho é, cada vez mais, uma experiência “24 horas por dia, 7 dias por semana”

Os computadores pessoais e a tecnologia online ampliaram a eficiência e a produtividade no ambiente de trabalho. Entretanto, para muitos funcionários, o preço por esta eficiência é o aumento da quantidade de trabalho em suas vidas fora do escritório.

Cole: “Décadas atrás, pensávamos que os computadores seriam artefatos que economizariam o trabalho. É verdade que a tecnologia nos faz mais produtivos, mas com esta produtividade vem expectativas maiores sobre como trabalhamos e quando trabalhamos.”

** A maior parte dos jornais impressos não existirá mais em cinco anos

“A circulação de jornais impressos continua a cair, e acreditamos que os únicos jornais impressos que sobreviverão estarão nos extremos – os maiores e os menores”, prevê Cole. Nos EUA, é provável, segundo ele, que apenas quatro dos maiores diários continuem a ser publicados em papel: New York Times, USA Today, Washington Post e Wall Street Journal. No outro extremo, sobreviverão os pequenos jornais semanais locais.

“A morte iminente do jornal impresso americano continua a levantar diversas questões”, diz o diretor. “As organizações de mídia sobreviverão e terão sucesso quando mudarem exclusivamente para a plataforma online? Como a mudança na distribuição de conteúdo afetará a qualidade e a profundidade do jornalismo?”

**Nossa privacidade está perdida

Talvez este seja o maior preço pago pelos americanos pelo uso da internet: a perda da privacidade, em especial como resultado da crescente tendência de coleta de informações que permite que seja traçado um padrão do comportamento online de qualquer internauta.

“A questão da privacidade é simples – se você faz qualquer coisa online, sua privacidade já era”, diz Cole. “Os americanos adoram poder comprar online, buscar informações online e participar de comunidades sociais online. Mas o preço a ser pago é que somos constantemente monitorados; organizações privadas sabem tudo o que há para saber sobre nós: nossos interesses, preferências de consumo, nosso comportamento e nossas crenças. O americanos estão claramente preocupados com isso. Nosso último estudo sobre o futuro digital descobriu que quase metade dos internautas acima dos 16 anos temem que companhias monitorem o que fazem online; em comparação, 38% disseram que o que os preocupa é o monitoramento pelo governo”.

** O papel da internet no processo político ainda é incerto

Os estudos concluíram que os americanos acreditam que a internet é importante nas campanhas políticas e para ajudar o público a entender a política, mas a tecnologia online ainda não afeta o poder político.

“Ainda que o alcance online aos eleitores continue a aumentar, e a captação de recursos seja uma prioridade para os candidatos, a internet ainda não é considerada uma ferramenta que os eleitores podem usar para obter mais poder político ou influência”, afirma Cole. “Nós acreditamos que isso está mudando, e nos próximos dois ciclos eleitorais vemos a internet se tornando um grande fator de mudança no cenário político”.

** A internet continuará a provocar mudanças nos hábitos de consumo, às custas do comércio tradicional

O mais recente estudo sobre o futuro digital concluiu que 68% dos americanos fazem compras online, e 70% de compradores online disseram que, ao comprar na internet, compram menos em lojas físicas. “Estamos vendo apenas o começo da mudança nos hábitos de consumo dos americanos por causa da internet”, diz Cole. “Daqui a cinco anos, o cenário tradicional de compras será completamente diferente de como é hoje”.

** O que virá a seguir?

“Em 2006, o YouTube e o Twitter tinham acabado de nascer, e o Facebook era uma criança”, diz Cole. “Meio século atrás, quem pensaria que estas tecnologias nascentes se tornariam o padrão para a comunicação social em 2011? A próxima grande tendência online está sendo desenvolvida neste momento por um novo grupo de visionários da internet esperando para ser ouvidos”.

Informações da USC Annenberg News [14/12/11].

Fonte: Observatório da Imprensa.

domingo, 1 de janeiro de 2012

O ATEISMO SEGUNDO ZIZEK

Slavoj Zizek: O ateísmo é um legado pelo qual vale a pena lutar.

Fonte: The New York Times
Autor: Slavoj Zizek
Tradução: Alexandre Marcati

LONDRES — Por séculos, nos foi dito que sem religião não somos mais do que animais egoístas lutando pelo nosso quinhão, nossa única moralidade a de uma matilha de lobos; apenas a religião, dizem, pode nos elevar a um nível espiritual mais alto. Hoje, quando a religião emerge como a fonte de violência homicida ao redor do mundo, garantias de que fundamentalistas cristãos ou muçulmanos ou hinduístas estão apenas abusando e pervertendo as nobres mensagens espirituais de seus credos soam cada vez mais vazias. Que tal restaurar a dignidade do ateísmo, um dos maiores legados da Europa e talvez nossa única chance de paz?

Mais de um século atrás, em “Os Irmãos Karamazov” e outras obras, Dostoiévski alertava sobre os perigos de um niilismo moral sem deus, defendendo essencialmente que, se Deus não existe, então tudo é permitido. O filósofo francês André Glucksmann até mesmo aplicou a crítica de Dostoiévski do niilismo sem deus ao 11 de setembro, como sugere o título de seu livro, “Dostoiévski em Manhattan”.

O argumento não poderia estar mais errado: A lição do terrorismo atual é que, se Deus existe, então tudo, incluindo explodir milhares de espectadores inocentes, é permitido – pelo menos àqueles que alegam agir diretamente em nome de Deus, já que, claramente, uma ligação direta com Deus justifica a violação de quaisquer refreamentos e considerações meramente humanos. Resumindo, os fundamentalistas não se tornaram diferentes dos comunistas Stalinistas “sem deus”, para os quais tudo foi permitido, já que viam a si mesmos como instrumentos diretos de sua divindade, a Necessidade Histórica do Progresso em Direção ao Comunismo.

Fundamentalistas fazem o que veem como boas ações de forma a satisfazer o desejo de Deus e ganhar a salvação; ateus o fazem simplesmente porque é a coisa certa a fazer. Não seria essa também nossa experiência mais elementar de moralidade? Quando faço uma boa ação, não a faço visando ganhar um favor de Deus; faço porque, se não fizesse, não poderia me olhar no espelho. Uma atitude moral é por definição sua própria recompensa. David Hume argumentou isso pungentemente quando escreveu que a única maneira de demonstrar verdadeiro respeito a Deus é agir moralmente ignorando sua existência.

Dois anos atrás, Europeus debatiam se o preâmbulo da Constituição Europeia deveria mencionar o cristianismo. Como de costume, um meio termo foi arranjado, uma referência em termos gerais à “herança religiosa” da Europa. Mas onde estava o legado mais precioso da Europa, o do ateísmo? O que faz da Europa moderna única é que ela é a primeira e única civilização em que o ateísmo é uma opção plenamente legítima, e não um obstáculo a qualquer posição pública.

O ateísmo é um legado europeu pelo qual vale a pena lutar, não menos por criar um espaço público seguro para os que creem. Considere o debate que inflamou-se em Ljubljana, a capital da Eslovênia, meu país natal, conforme a controvérsia constitucional fervia: muçulmanos (em sua maioria trabalhadores imigrantes das antigas repúblicas Iugoslavas) devem ter permissão para construir uma mesquita? Enquanto os conservadores opunham-se à mesquita por razões culturais, políticas e até arquitetônicas, a revista semanal liberal Mladina foi consistentemente explícita em seu apoio à mesquita, em continuar com suas preocupações pelos direitos daqueles que vinham de outras antigas repúblicas Iugoslavas.

Não surpreendentemente, dadas as atitudes liberais, Mladina também foi uma das poucas publicações eslovenas a republicar as caricaturas de Maomé. E, reciprocamente, aqueles que demonstraram maior “compreensão” pelos violentos protestos muçulmanos causados por aqueles cartuns foram também aqueles que regularmente expressavam sua preocupação com o futuro do cristianismo na Europa.

Estas alianças estranhas confrontam os muçulmanos da Europa com uma escolha difícil: A única força política que não os reduz a cidadãos de segunda classe e os concede o espaço para expressar sua identidade religiosa são liberais ateus “sem deus”, enquanto aqueles mais próximos a suas práticas religiosas sociais, seu reflexo cristão, são seus maiores inimigos políticos.

O paradoxo é que os únicos verdadeiros aliados dos muçulmanos não são aqueles que primeiramente publicaram as caricaturas para chocar, mas aqueles que, em defesa do ideal da liberdade de expressão, republicaram-nas.

Enquanto um verdadeiro ateu não tem necessidade de apoiar sua própria posição provocando crentes com blasfêmia, ele também se recusa a reduzir o problema das caricaturas de Maomé ao respeito às crenças de outras pessoas. O respeito às crenças dos outros como o valor maior só pode significar uma de duas coisas: Ou tratamos o outro de forma condescendente, evitando magoá-lo para não arruinar suas ilusões, ou adotamos a posição relativista de vários “regimes da verdade”, desqualificando como imposição violenta qualquer posição clara em relação à verdade.

Mas que tal submeter o Islã – junto com todas as outras religiões – a uma respeitosa, mas por isso mesmo não menos implacável, análise crítica? Essa, e apenas essa, é a maneira de mostrar verdadeiro respeito aos muçulmanos: tratá-los como adultos responsáveis por suas crenças.

Slavoj Zizek, diretor internacional do Instituto de Humanidades de Birbecj, é o autor, mais recentemente, de “The Parallax View” (“A visão em paralaxe”

Fonte: Bule voador.