terça-feira, 16 de setembro de 2014

COMPLEXO DE VIRA-LATAS

O COMPLEXO DE VIRA-LATAS
Durante a Copa do Mundo falou-se muito do complexo de vira-latas por causa das críticas à organização deste evento esportivo. A expressão foi criada por Nelson Rodrigues justamente em referência ao desastre da derrota na final de 1950, ou seja, da primeira copa organizada no Brasil. Após a derrota contra o Uruguai, os brasileiros haviam ficado, segundo Nelson, com complexo de inferioridade achando que nada daria certo em nosso país, nem mesmo Copa do mundo. Pobre Nelson, ele não poderia imaginar que uma catástrofe maior aconteceria em 2014 perante a Alemanha...
Embora o Nelson Rodrigues tenha criado esta expressão após 1950, a origem do problema é bem anterior. Ela vem da colonização e tornou-se tema de debates após a independência. A elite branca de origem portuguesa gostava de possuir negros escravos, mas detestava o fato óbvio de que durante a colonização houve um processo de miscigenação da população. A mistura racial foi mal vista desde o início e para este mal estar contribuíram muitos pensadores europeus e brasileiros. Quem iniciou a quebra deste paradigma foi Gilberto Freire, cujo trabalho consistiu justamente em realçar a miscigenação. Mesmo que o conceito equivocado de “democracia racial” seja uma consequência de suas teorias, ainda assim sua contribuição foi um choque para aqueles que defendiam o ideal de “raça pura”.
Assim, o tal complexo de vira-latas, a ideia de que no Brasil nada dará certo, vem deste mal estar que a elite brasileira sentia com a mistura de raças. Aliado a isso veio o deslumbre com a modernidade europeia e norte-americana. O desenvolvimento desigual e combinado do capitalismo fez de algumas nações peças centrais da modernidade e o resto ficou como “periferia”. A noção de que pertencemos à periferia afetou ainda mais a autoestima da elite brasileira. Aumentou a admiração e o desejo de imitar a elite destas regiões centrais. Embora hoje tenhamos consciência de que aprender línguas estrangeiras é fundamental para o crescimento cultural do indivíduo, por proporcionar que ele tenha acesso a uma variedade maior de informações, não foi por este motivo que nossa elite (notadamente a carioca) aprendeu o francês no século XIX. Foi mais por esnobismo e imitação barata do estrangeiro, embora tenham existido também honrosas exceções.
Mas este complexo de vira-latas não se desenvolveu sem contradições. Seria possível existir um ódio puro ao país ao qual se pertence? É bom lembrar que este fenômeno se desenvolve paralelo à formação do Estado nacional e seu correlato ideológico que é o nacionalismo. O romance “Gracias por el fuego”, do escritor uruguaio Mario Benedetti, em seu primeiro capítulo explora um pouco e escancara esta contradição. Quinze uruguaios, homens e mulheres, todos pertencentes às famílias mais ricas do Uruguai, encontram-se em um restaurante  em uma grande cidade norte-americana. Entre apresentações e flertes surge nas conversas  comparações entre o Uruguai e os EUA. O deslumbre com a nação estadunidense destaca-se ao lado do descrédito com a nação sul-americana de origem. Uma senhora chega a declarar que tem “vergonha de ser uruguaia”. Um deles levanta-se e vai atender a um telefonema. Ao voltar completamente transtornado e abatido narra que uma catástrofe de proporção gigantesca atingiu o Uruguai. O país foi atingido por um maremoto seguido de chuvas torrenciais que causaram uma inundação de proporções diluvianas. O país estava todo destruído, inundado e com milhares de mortos.
Só um narrador como Benedetti conseguiria descrever uma mudança tão extraordinária no tom da conversa. De desprezo pelo Uruguai surgem de forma súbita o apego e o amor pela pátria e por seu povo. Os supostos cosmopolitas tornam-se provincianos apaixonados pela terra natal. O que o autor uruguaio demonstra é que no fundo o complexo de vira-latas não passa de uma máscara ideológica para ocultar o provincianismo da elite. Encantada com a modernidade dos países centrais ela tenta vestir uma roupa que lhe interessa, mas que não lhe cabe...
A Globalização, tão decantada em verso e prosa pela elite brasileira e mundial, trouxe a ilusão de que valores culturais nacionais estariam em decadência e de que finalmente havia chegado o tempo do cosmopolitismo universal. Mas hoje um dos fenômenos das contradições desta mesma globalização é justamente um fortalecimento de valores culturais nacionais, na maior parte das vezes com viés conservador nacionalista ou religioso. Podemos concluir que há uma tendência de aumento do provincianismo em vastas camadas da população mundial. Isso fará com que aumente o fosso da distância destas massas com as elites que, apegadas à sua máscara de modernidade neoliberal, tenderão a se tornarem mais ainda presas ao complexo de vira-latas.

Aristóteles lima Santana, 16/09/2014.