terça-feira, 14 de abril de 2015

A NOSSA "AURORA"

A NOSSA “AURORA”
No conto “Aurora sem dia” o nosso Machado de Assis exercita uma crítica deveras irônica àqueles que se julgam sábios mas que desprezam o estudo e a aprendizagem. O personagem principal, Luiz Tinoco, se julga um grande poeta na primeira parte da história, e na segunda julga-se um grande orador da política. Em ambos os projetos ele despreza a leitura tanto dos grandes poetas como dos grandes oradores. Sua desculpa é que ele possui o “dom” para uma e outra. Ele não precisa aprender, pois já sabe. O objetivo de Machado é claro: ao mostrar como o sujeito se dá mal em ambos os projetos ele ridiculariza aqueles que não pesquisam, não se informam e que usam a desculpa do “dom” para ocultar a própria preguiça intelectual.
Se haviam casos deste tipo na época de Machado, em nossos dias eles se tornaram o lugar comum. Gente que acha que pode criar sem precisar passar por um processo de aprendizagem é o que mais se tem por ai. Jovens querem escrever, fazer vídeos, fazer stand up comedy e, o que é pior, intervir em debates sobre temas sérios, sem ler nada sobre tais assuntos ou quaisquer outros. Com a facilidade técnica que temos hoje (acesso à internet, câmeras para filmagem, blogs para escrever, facilidade para divulgar trabalhos, etc.) um grande número de pessoas quer mostrar trabalhos em diversas áreas, mas se recusam a passar pelo necessário processo de aprendizagem. Este processo não inclui apenas a leitura de livros, claro, mas não acontece sem ele.
Em parte a culpa disso pertence ao “culto à técnica”. A técnica no sentido de tecnologia disponível (“domino bem os recursos tecnológicos ao meu dispor, logo, sou bom para trabalhar com arte”). E a criatividade? “Bem, eu tenho o dom e isso é o bastante”. Para estas  pessoas, recordando um velho debate dos anos sessenta, “as ideias caem do céu”, ou “são  inatas da própria mente”.
Um outro fator é a ilusão de que os gênios (de qualquer área) são dotados de um “dom” especial. Para estas pessoas ingênuas Hendrix não passou anos estudando guitarra e nem o próprio Machado de Assis leu vários livros para desenvolver seu intelecto literário criativo. Estes e outros que se destacaram na literatura e em outras formas de arte teriam sua criatividade inata, pronta, sem passar por um processo de desenvolvimento.
A queda nos níveis de leitura só poderia dar nisso. O tempo em que vivemos assiste à expansão da imagem e não é raro alguém argumentar que “não preciso ler livros, já assisto filmes”. É evidente que assistir filmes, palestras, peças teatrais, escutar boa música, etc., tudo isso contribui para a formação cultural do indivíduo. Mas é a leitura que mais mexe com a imaginação. O texto escrito força sua mente a imaginar personagens, possíveis desdobramentos para o texto lido, repulsa, paixão, imaginar finais alternativos, etc. Em um filme é possível ter algumas destas sensações, mas não todas e nem na mesma intensidade de um texto lido. A visualização de cenas e personagens em um filme é imediata, algo já construído. Você é apenas um receptor passivo deles. A leitura desenvolve mais a imaginação criativa, um pressuposto básico para qualquer forma de arte.
Mas não falemos apenas de arte, não nos esqueçamos das opiniões. No admirável mundo novo das redes sociais expandiu-se o terreno propício para dar opiniões sobre qualquer assunto. Com base em quê? Com base em outras opiniões ditas por outras pessoas nas mesmas redes sociais... É evidente que o número excessivo de participantes das redes sociais inclui gente culta e de bom nível de leitura, mas estas pessoas são exceções. As massas estão nas redes sociais. A internet democratizou a participação popular em debates públicos. Algo a se comemorar, mas também para ser visto com cautela, pois as opiniões rasteiras e simplistas em número excessivo esmagam opiniões bem fundamentadas. Como o simplismo é mais fácil de ser apreendido, ele leva uma larga vantagem. Nas redes sociais surgiu o que podemos chamar de “intelectual de facebook”, aquele que repete as informações que lhe interessam com muita convicção e pouco discernimento e avaliação crítica. Nas redes sociais impera a ditadura do chavão: “vai pra cuba”, “você é coxinha”, você é petralha”, “a culpa é do FHC”, “a culpa é do Lula”, etc., a lista seria grande demais. “Para quê ler livros se posso repetir chavões na internet?” Se vivesse nos dias de hoje  Machado de Assis teria material suficiente para escrever outros contos irônicos. A internet seria uma fonte inesgotável para ele.
Voltando ao debate sobre a criatividade artística, podemos afirmar que uma das consequências da falta de pesquisa, leitura e estudo é a expansão do plágio. As fórmulas já prontas são reutilizadas e, muitas vezes, sem sequer se dar ao trabalho de ao menos disfarçá-las. O declínio da criatividade é sempre acompanhado da repetição infinita de fórmulas já testadas. Claro que os menos criativos tendem sempre a copiar aquilo que vende mais. Após o extraordinário sucesso de “O senhor dos anéis” vimos surgir uma séria infinita de autores com histórias na mesma linha alimentando as indústrias cinematográfica e editorial. Se não são plágios no sentido próprio da palavra, não se pode negar que seu objetivo é “pegar o bonde andando” do sucesso da obra de Tolkien aproveitando uma fórmula que já deu certo. Devemos admitir que o desejo de fama e fortuna rápida também contribui para isso. Não se trata apenas de falta de criatividade...
O culto à tecnologia, o declínio da leitura e o plágio como consequência poderão causar a decadência da cultura em nosso tempo? Aliado a isso tudo acrescentamos o desejo de fama (e de riqueza) rápida e teremos um universo de títulos literários e artísticos com capas diferentes (quando muito) e conteúdos semelhantes. Se vivesse nos dias de hoje o Luiz Tinoco faria muito sucesso.

Aristóteles Lima Santana, 10/03/2015